quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Futebol: Quo Vadis?

A questão é obrigatória: "Para onde caminha o futebol?". Se este desporto fosse jogado com uma bola de cristal, eu diria que a resposta estava na ponta do pé. Mas não é. A protagonista deste jogo é feita de borracha e couro. Apesar da resistência dos materiais que a compõem, a bola de futebol desgasta-se e rompe-se. Poderá acontecer o mesmo ao futebol?

Este jogo foi uma das maiores invenções da Humanidade. Da Europa à África, das Américas à Ásia, passando pela Oceânia, o Mundo é uma autêntica bola de futebol. Não é estranho, portanto, que tantas pessoas sejam atingidas pelo seu Cupido. Foi ainda muito jovem que eu ouvi o seu chamamento: "Ei, falta-nos um. Queres jogar?". Aceitei. Pudesse eu ter parado o mundo e ficaria eternamente ali. Mas não pude e o tempo passou invariavelmente. Agora, ouço tocar o despertador memorial e ecoa em mim a nostalgia. Saudades do que fui ontem e saudades dos que foram miúdos comigo. Encontrávamos no futebol uma razão para saltarmos da cama para ir à escola. Sabíamos que o campo de futebol esperava por alguém que o acordasse e o enchesse de vida. Ficávamos no campo a cumprir a missão dos aspirantes a futebolistas, enquanto a maioria já estava nas salas. As aulas não eram mais do que o intervalo do nosso jogo. Rendíamo-nos por instantes disciplinares, deixando o campo com promessas de um «até já». Entrávamos, na sala, atrasados, esbaforidos e suados. Após o toque de saída, corríamos como desalmados pelos corredores para garantirmos lugar no campo.

Na ausência da bola, improvisávamos latas e garrafas, só para matar o bichinho. Tínhamos os ídolos colados na parede do quarto e ficávamos fulos ao olhar para os espaços em branco das cadernetas de cromos da bola. Pior só os montes de caras repetidas para troca. Fazíamos o TPC em contra-relógio porque havia jogo marcado na rua. Muitas vezes, nem o TPC fazíamos porque deveres mais importantes se sobrepunham. Regulamentávamos o «muda aos 5, acaba aos 10, há guarda-redes avançado, não valem estouros e valem tabelinhas». Entretínhamo-nos no 2 contra 2 com balizas do tamanho de um passo, em meiinhos, em concursos de toques sem deixar cair a bola. Jogávamos ao "bota fora" e, em número ímpar, recorríamos ao 'vira para trás' (vulgo «baralhinho» ou Portugal-Espanha). Testávamos a perícia e a pontaria na paredinha.

Soltávamos um «ai» quando a bola caía num jardim ou quintal próximo. Com azar, ouvíamos um raspanete de um velhote com promessas de queixa aos pais e ameaças de corte de bola. Com azar duplo, víamos tudo repetir-se, excepto a ameaça de corte de bola que, infelizmente, se consumava. Nunca percebíamos se os velhotes tinham inveja da nossa juventude ou se não gostavam mesmo de futebol. Matávamos a fome de um lanche com uma bola de...Berlim numa mão e a de futebol no pé. Quando ouvíamos as mães chamando ao longe, recorríamos ao "quem marcar ganha", como se, até ali, o jogo fosse um simples treino e entrássemos na finalíssima que iria ser decidida com golo de ouro. Éramos os donos das ruas, treinando para amar convincentemente o jogo.

Num estádio à pinha, aguentávamos as quentes tardes de Verão ou as abundantes lágrimas dos deuses com a mesma determinação e paixão. Víamos tochas e bandeiras a colorir o amor comum. Observávamos os velhotes no estádio com o rádio colado no ouvido para saberem o resultado dos rivais, pois jogavam todos à mesma hora. Vivíamos dilemas: ou estreávamos a roupa e sapatilhas novas na peladinha e divertíamo-nos ou poupávamos os acessórios e o latim dos pais. Tratávamo-nos pelo nome dos ídolos, pois assim sentíamo-nos como os verdadeiros e apelávamos ao poder da transcendência. Escutávamos estas coisas, quando os tipos da televisão comentavam a vitória dos fracos sobre os fortes. Só víamos semanalmente um jogo do campeonato e das competições europeias na TV. Esta só interessava para assistir ao futebol, ao capitão Tsubasa e pouco mais. Adormecíamos na esperança de acordarmos jogadores do clube do nosso coração.

Hoje somos apenas uma recordação. Não vejo mais bandos de miúdos nas ruas correndo atrás de uma bola dizendo que são o Figo, o Pauleta ou o Ronaldo. Os miúdos não ocupam os místicos lugares que convertíamos em campos. Deixam que o alcatrão, os carros e os prédios vençam o campeonato das vontades. Não há mais gente em transacções de cromos ou abrindo saquinhos novos em busca da tal raridade que falta para fechar a colecção. Garotada em êxtase pelos jogos de computador sobre o desporto-rei. Mas será isso amar o futebol? Considero felizes aqueles que nunca precisaram de simular jogos de futebol, num PC ou numa consola, para sentirem o prazer deste jogo.

Neste futebol contemporâneo, falta alegria, paixão, pureza.... no campo e na bancada. Falta a chama ardente que catapulta os seres humanos para o Olimpo. Vejo estádios novos, outros remodelados, em sítios lindos, com acessos lindos, mas com cadeiras vazias. Chegou-se ao cúmulo de colocar cadeiras coloridas para suprir a falta de gente. Mas estes arquitectos, estes construtores, estes dirigentes, estes (ir)responsáveis que se abraçam de cumplicidade, querem gente nos estádios ou querem bilhetes caros e cadeiras lindas a enfeitá-los nos jogos? Para completar a paisagem, só mesmo assistindo no sofá, numa segunda-feira à noite, em sistema «pay-per-view» a tais encantos decorativos! Fomenta-se o futebol-cinema, com argumentistas, realizadores e actores a comporem o filme do nosso jogo, enquanto nos reservam o milho. As pipocas são uma bela metáfora do desejo dos patrões do futebol: "Comam e calem!". Fruto deste novo conceito, mistura-se a realidade com a ficção. Futebolistas que simulam como o melhor dos vilões, irredutíveis defensores que resistem pelo anti-jogo, quais Asterix e Obelix inspiradores, e jogadores frágeis que necessitam de um "Serviço de Urgência" a todo o tempo. Com tão deprimente argumento, como pode esta película de 90 minutos não terminar num bocejo?

Este é o futebol onde o emblema é secundário no equipamento e onde ter múltiplas referências publicitárias no mesmo é tão natural como a sua sede de Coca-Cola a 3 euros (mais saborosa, presumo). Este é o futebol das estrelas cadentes que brilham a vender isto e aquilo. Este é o futebol onde se calam os hinos dos clubes a favor dos hits musicais do momento. Este é o futebol moderno que se alonga numa interminável desilusão que eu não quero mais saber. Mas o que se passará com os chefes da bola? Será que se esqueceram do seu tempo de miúdos? Tempo em que eram, tal como nós, os donos do mundo depois de o meterem numa baliza e gritarem «GOLO!».

(texto originalmente publicado por mim aqui)

1 comentário:

Anónimo disse...

Agradecendo e retribuindo o cumprimento do amigo Dragão, que muito gentilmente nos brindou com uma visita ao nosso blog insular.
É sempre com enorme orgulho que recebemos os comentários daqueles que, por razões emotivas e vantagens geográficas, privam de mais perto com o que para nós é o centro do Mundo, ou seja, o Porto.
Receba as mais cordiais saudações da família portista destas ilhas e parabéns pelo (este sim) magnífico blog.
Bem haja!
FCP ATÉ MORRER!!!