Hoje não vou fazer a convencional crónica do Porto-Leixões. Decidi fazer a retrospectiva do meu dia, antes de entrar no estádio, e de todas as implicações que um jogo, a uma Segunda-Feira às 19h45m, traz.
A minha Segunda-Feira começa impreterivelmente às 7 horas da manhã. O tempo voa no momento intermédio em que nos levantamos e começamos irreflectidamente a olhar para o relógio. Há coisas para fazer mas levam demasiado tempo e deixo-as para mais tarde, pois está em causa deslocar-me para a paragem do autocarro. Já são 8 horas da manhã. Apenas fiz o elementar antes de sair de casa. Chego à paragem do bus. Dezenas de pessoas aglomeram-se junto do vidrado, procurando resguardar-se do frio. Chega mais gente. Alguns falam do tempo, outros comentam o fim-de-semana desportivo, outros ainda resmungam pela demora do autocarro. Ninguém se referia ao FC Porto. Mas eu já falava nele interiormente, esperando que as horas passassem tão depressa até à hora do jogo como passou o tempo em que me levantei da cama para cumprir com as minhas obrigações.
Já espero há dez minutos pelo transporte público. Vejo rebuliço entre as pessoas. Vinha ao longe um autocarro. Vislumbrei que os dígitos correspondiam ao que tinha de apanhar. Chegado à paragem, constato que o bus estava cheio. Poucas pessoas saíram e muitas queriam entrar. Pela ordem de chegada, as pessoas dirigem-se para o autocarro. Consegui entrar. Algumas pessoas ficaram à espera de outro com menos lotação. São, mais ou menos, 8h20m e já tive a primeira vitória do dia. Foi complicado, mas foi uma vitória.
A viagem prossegue de forma desconfortável. Há demasiada gente no mesmo espaço. Há senhoras com naturais dificuldades em segurarem-se e lá vamos levantando um ou outro encontrão, uma ou outra calcadela. Há miúdos com mochilas às costas que forçam a passagem para o fundo do autocarro. Há mulheres com crianças ao colo que não sabem para que porta se devem deslocar para saírem com mais facilidade e em segurança. As janelas estão fechadas, o ar condicionado não funciona ou está desligado. Começa a ser difícil respirar. O que vale é que saio já na próxima paragem. Não sei como hei-de furar por entre as pessoas de modo a não magoar ninguém. Peço licença às pessoas junto da porta traseira. Dizem-me que também vão sair. Ok, parece que vai sair muita gente nesta paragem.
Já estou cá fora. Efectivamente, saiu muita gente. Vejo as horas. Ainda tenho tempo. No sítio onde me encontro, há muito mais trânsito na estrada. Os acessos estão muito congestionados. É o normal nesta zona, nesta hora e quando há obras intermináveis que complicam ainda mais o que já de si é complicado. Vem aí o meu bus. Poderia transcrever a papel químico o que se passou nesta paragem e o que já se havia passado na anterior. O tempo, o futebol, a demora, o bus novamente cheio, o posicionamento táctico para se entrar em primeiro, gente aflita com medo de não chegar a horas ao emprego.... e o Porto. Ninguém falava nele, mas eu pensava-o. Desta vez, conseguiram entrar todos. Vitória geral.
A viagem é mais demorada que a anterior. Mais caminho a percorrer, mais carros na rua, mais semáforos, mais estacionamentos abusivos, mais olhares nervosos para o relógio, mais impaciência, como nas pernas trementes daquele homem que está sentado mais à frente. Há gente que suspira, ansiosa que a viagem termine para começarem verdadeiramente o seu dia. Chegamos ao terminal. Já nem quero ver as horas, sei que estou atrasado e quero percorrer de forma lesta os metros que distam do terminal do autocarro ao sítio onde me esperam.
Finalmente cheguei. Há coisas para fazer. Aqui não posso deixar para depois, como em casa. Tarefas para realizar. Pessoas com quem falar. Explicações para ouvir. O tempo agora parece alentejano. Nunca mais passa. Óptimo, já são horas do almoço. O pior ainda aí vem. A tarde será longuíssima. Não terei muito tempo para pensar noutras coisas, que não o cumprimento das minhas funções. Porém, há sempre coisas que me levam a formular raciocínios em que acabo a pensar no Porto. É involuntário. O Porto não me sai da cabeça.
Só peço ao tempo para se despachar porque já não aguento a ansiedade. Acumulo trabalhos. Há um que fica para depois. Este tem de ser feito agora, total prioridade. Tal como eu tenho licença para sair um pouquinho mais cedo do que o habitual. Há quem saiba que o vou fazer para ir ao Dragão, outros não. Também não quero abusar da confiança de quem me autoriza a sair mais cedo e tenho de aguardar o máximo de tempo possível. As 19h são a minha deadline. Esforço-me para me manter concentrado no que estou a fazer. Se ninguém reparar que já estou com a mente no Dragão, então sou um bom actor. A concentração é aparente mas o remoer interior é real. Agora não posso vacilar, isto é importante, tenho de estar atento ao que me dizem. Embrenhado nesta questão esqueço-me das horas. Quando me apercebo do meu lapso são 19 horas e 8 minutos. Culpo-me. Que desleixo o meu, trocar a minha mulher azul por um monte de papéis?!... Desculpo-me e aviso que vou sair. Até amanhã.
O jogo começa às 19h45m e eu ainda estou a uma distância considerável do Dragão. Penso que se tiver a sorte de apanhar o autocarro rápido e se não houver muito trânsito, então ainda vejo as equipas entrando em campo e ouço o nosso hino. Vejo duas pessoas na paragem. Calculo que o autocarro tenha partido sem mim. E agora? Qual será a melhor forma de chegar ao estádio? Aproxima-se um autocarro. Vou neste. Já lá dentro consulto o meu GPS mental e com recurso ao senso comum considero que é melhor abandonar este bus. Concebo um trajecto alternativo. Saí três paragens à frente. Planeio tomar um autocarro que deixar-me-à juntinho à Alameda do Dragão. O meu transporte chegou. Curiosamente levava pouca gente. São 19h20m e estou parado numa longa fila devido aos semáforos. Todavia, a viagem até está a ser rápida e os corredores do bus ajudam a galgar terreno. A aproximação à zona das Antas é terrível. Muitos carros. Gente que saiu do trabalho e desloca-se para casa. Gente que saiu do trabalho e desloca-se para o Dragão. Gente que não sei o que está ali a fazer porque não pode estacionar ali! Já tiravas isso da frente para o autocarro passar, não? Buzine, senhor motorista! Olhe que o semáforo está verde, arranque com isso.... Pronto, já dei sinal para sair. Sh*t, o jogo já começou. Faltam uns míseros metros. Calma, estou quase a chegar. Estes minutos são de aquecimento e estudo mútuo das equipas. Não se há-de passar nada. Ó senhor motorista já abria a porta, não? Os carros andam para a frente e chego à paragem. Saio juntamente com um rapaz que vem das aulas e um senhor que vai para o Dragão. Reconheci isso pelo ar apressado que levava. Ultrapasso-o. Ouço golo quando passo à beira de um café. Golo? Já? De quem? Nem penso em parar para perguntar. Sigo apressado e com a dúvida sobre qual das equipas marcara. Vou a meio da Alameda, passo de corrida, esbaforido..... GOLO! Desta vez sabia que tinha sido o Porto a marcar, o barulho da multidão esclarecia-me. Sorri de contente, mas não sabia se este era o primeiro golo do Porto ou se já seria o segundo. Certo é que o jogo já tinha dois golos e eu ainda me estava a aproximar dos stewards para a revista. Despachei-me rápido, agora corro para os torniquetes, não vá perder mais um golo depois de já estar a vislumbrar pedaços do relvado. Passo os torniquetes, desço as escadas e vejo no ecrã que está 2-0. Felizmente ganhávamos, mas desafortunadamente não tinha visto nenhum dos golos.
O jogo correu bem. Marcámos mais um e jogámos o quanto baste. Faltam dois minutos de desconto para o fim do jogo. Decido sair. Com todas as peripécias para chegar ao estádio, não tive tempo sequer para comer. O meu estômago não vai em futebóis e aguentei o seu aborrecimento até onde pude. Tinha agora de lhe prestar atenção e satisfazê-lo. Perfeito, arranjei boleia de carro até casa. Ainda tenho de caminhar um pouco. Carago, o ar é gélido. Falta pouco. Ali está o carro. Agora é sempre a andar até casa.
22h05m. Hora de chegada a casa. Com a alma saciada de futebol, com o corpo dorido e com um estômago a dar horas, o tempo agora era todo meu. Fisiologia satisfeita, reflicto sobre o meu dia e digiro o jogo do Porto. Bela vitória. Penso no sofrimento que passei para me deslocar ao estádio. O Porto tinha vencido por 3-0 e eu só vira um golo. Raios, chateio-me por isso. Por que escolheram aquela hora? Por que não jogaram no Domingo? Maldita SportTV. Maldita Liga de Clubes. Maldito Hermínio. Maldito Laurentino. Vilipendio os culpados que me ocorrem. Omito a culpa do Porto, que depende das receitas das transmissões televisivas e está inserido no business. Mas quem defende os meus direitos de adepto? Quem se pronuncia sobre a regulamentação de horários e preços dos bilhetes no futebol?
Implementaram-se leis para controlar os adeptos nos estádios. "Não à violência", dizem eles. Quem se importa pela violência física e emocional que sofri ao longo do meu dia para poder satisfazer a minha vontade de estar presente num acontecimento futebolístico? Importam-se os que sentem a mesma indiferença, o mesmo desprezo e desrespeito. Somente aquelas pessoas que não se sentem culpadas por amar e que pensam não serem as únicas a ter de fazer sacrifícios para assistirem ao vivo a um jogo do clube do seu coração. Quem disse que já não há amor?
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